26 de dezembro de 2022

Icó-Ce: Profeta da chuva estuda os sinais do céu e dita ritmo do plantio no sertão

Seu Chico Vitô segura a casa do joão-de-barro; se a porta estiver construída para o poente, é sinal de que o ano vai ser bom de chuva Imagem: Acervo pessoal

Expressões como "a chuva é o bem mais precioso" ou "chuva é vida" são comuns na boca do sertanejo e demonstram o significado que a água tem para quem vive onde a seca é comum na maior parte do ano. Essa região é o semiárido brasileiro. Neste lugar, há mais de duas décadas, Francisco Vito de Araújo, 70, o Chico Vitô, abraçou o ofício de "profeta da chuva". A missão consiste em anunciar se o inverno vai ser de chuva, orientando o plantio de mais de 80 famílias da comunidade rural de Lima Campos, em Icó (CE). Significa, portanto, dizer se o bem mais precioso para os sertanejos vai cair do céu com fartura ou escassez.

Para isso, ele realiza uma série de experiências que envolvem a observação de sinais da natureza e analisa a coincidência entre os resultados. Só então profetiza.

Chuva de Natal? 

"Este ano, eu vi a barra do dia 18 de outubro e deu boa, uma barra muito boa, tanto no nascer do sol, quanto no pôr do sol", diz ele. A barra é o nome que se dá a uma faixa de nuvem, de formato horizontal, na frente do sol. Se esta faixa se formar no momento em que ele nasce e quando se põe, para os profetas, é sinal de chuva.

Quando o sol nasce limpo e se põe limpo [sem nuvem na frente], não é muito bom não", explica. Ele também analisa o vento do Aracati, que, segundo os moradores de regiões ribeirinhas do Ceará, sopra diariamente no fim das tardes e início das noites quentes, principalmente na época seca do ano. É como uma brisa que carrega sinais do clima. "Teve um período, este ano, que [o vento] correu muito bem. Estamos esperando, agora no dia 25 de Natal. Se ele vier bom, é uma das últimas experiências para o inverno de 2023", explica o sábio Chico Vitô. O profeta costuma ainda buscar as casas da ave conhecida por joão-de-barro e observar se a porta foi construída na direção do nascente — sinal de seca — ou do poente, sinal de inverno chuvoso.

De pai para filho 

Seu Chico conta que essa troca de aprendizados é uma tradição na roça. Para começar a profetizar, é preciso tempo. Ele iniciou a formação com o pai, que por sua vez aprendeu o ofício com o avô, ainda criança. Na juventude, o treino era feito com a vizinhança, que costumava se reunir na casa de um dos moradores da comunidade e contemplar o céu por horas. "Naquela época não existia televisão, nem esses meios de comunicação de hoje, nem energia. Então, a gente gostava de sentar com os vizinhos nos terreiros das casas e observar a lua, principalmente quando ela estava perto de ser cheia", lembra.

Observava os planetas, a estrela Dalva, o Cruzeiro do Sul [constelação] e a gente dizia se ia chover ou não. Eu comecei a prever a chuva de 20 anos para cá. Antes disso, não me sentia seguro Chico Vitôr

O tempo de observação serve para criar intimidade com a natureza e para evitar erros nas previsões. Na região onde vive, há outros profetas da chuva como ele. E as famílias agricultoras costumam ouvir as profecias destes sábios para decidir sobre a plantação. "Contando com essas previsões, graças a Deus, a gente nunca perdeu a plantação."

E a meteorologia?

O órgão responsável pelas previsões meteorológicas do Ceará é a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Fuceme). Seu Chico diz que é comum que o resultado das previsões do órgão coincidam com a dos profetas. Na roça, porém, a palavra final é dos sábios — não os da cidade, mas os da comunidade. "A gente não se espelha na Fuceme, não. Nossa crença popular é diferenciada", diz. O saber de Chico e outros profetas é reconhecido pelos governos locais, que promovem palestras e encontros para reverenciar a cultura popular e manter esta memória preservada. Todo mês de janeiro, por exemplo, ele e dezenas de outros profetas da chuva cearenses se reúnem para compartilhar o resultado das suas previsões anuais. O Encontro de Guardadores de Sementes e Experiências de Chuva ocorre há mais de 21 anos no Sítio Aroeira, em Orós, no semiárido cearense. Impactos ambientais É muito importante esse dom que Deus me deu, mesmo sem ir para o banco da escola, aprender a crença popular e nunca decepcionar. A natureza nos dá um saber que, mesmo quem estudou a ciência, não sabe Chico Vitôr

Há tantos anos acostumado a ler os sinais dos céus e da terra, Seu Chico e os profetas veem desafios inéditos pela frente. O desequilíbrio ambiental, causado pela ação do homem, já afeta a realização das experiências. "O homem, com a sua teoria, está desequilibrando totalmente a natureza. Com isso, os rios, a fauna e a flora estão desaparecendo", diz ele, que também teme pela continuidade das profecias. "A gente se preocupa com aquelas pessoas que querem seguir o que estamos fazendo. Eu espero que os jovens, mesmo estando no banco da escola aprendendo a teoria, voltem [para a roça] para aprender os saberes populares", afirma


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